O presente estudo tem por finalidade analisar a legalidade e a constitucionalidade da exigência contida nos parágrafos 6º e 8° do art. 6º da Instrução Normativa RFB nº 1.234/2012, que impõem à entidade contratada a obrigação de apresentar o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS no momento da contratação com o poder público, sob pena de retenção dos tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS/Pasep e Cofins) sobre o valor total do documento fiscal ou fatura.
I. CONTEXTO NORMATIVO
Instrução Normativa RFB n° 1234/2012
Dispõe sobre a retenção de tributos incidentes sobre pagamentos efetuados a pessoas jurídicas pelo fornecimento de bens ou prestação de serviços pelos órgãos da administração pública federal direta, autarquias, fundações, empresas públicas federais, sociedades de economia mista e demais entidades que menciona, e pelos órgãos da administração pública direta dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, inclusive suas autarquias e fundações.
(…)
Art. 2º Os órgãos e entidades a que se refere o art. 1º ficam obrigados a efetuar a retenção, na fonte, do imposto sobre a renda, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e da Contribuição para o PIS/Pasep incidentes sobre os pagamentos que efetuarem a pessoas jurídicas pelo fornecimento de bens ou prestação de serviços em geral, inclusive obras de construção civil.
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CAPÍTULO III
DAS HIPÓTESES EM QUE NÃO HAVERÁ RETENÇÃO
Art. 4º Não serão retidos os valores correspondentes ao IR e às contribuições de que trata esta Instrução Normativa, nos pagamentos efetuados a:
I – templos de qualquer culto;
II – partidos políticos;
III – instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, a que se refere o art. 12 da Lei nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997;
IV – instituições de caráter filantrópico, recreativo, cultural, científico e às associações civis, a que se refere o art. 15 da Lei nº 9.532, de 1997;
V – sindicatos, federações e confederações de empregados;
VI – serviços sociais autônomos, criados ou autorizados por lei;
VII – conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas;
VIII – fundações de direito privado e a fundações públicas instituídas ou mantidas pelo Poder Público;
IX – condomínios edilícios;
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§ 1º. A imunidade ou a isenção das entidades previstas nos incisos III e IV é restrita aos serviços para os quais tenham sido instituídas, observado o disposto nos arts. 12 e 15 da Lei nº 9.532, de 10 de dezembro de 1997.
§ 2º. A condição de imunidade e isenção de que trata o §1º será declarada pela entidade nos anexos II e III.
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§ 6º Sem prejuízo do disposto no parágrafo único do art. 4º, as entidades beneficentes de assistência social previstas nos incisos III e IV do caput do art. 4º que atuam nas áreas da saúde, da educação e da assistência social deverão apresentar, juntamente com a declaração de que trata o caput, o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas), expedido pelos Ministérios das respectivas áreas de atuação da entidade, na forma estabelecida pelo Decreto nº 8.242, de 23 de maio de 2014.
§ 7º Para fins do disposto no § 6º, não serão aceitos comprovantes de requerimentos:
I – de concessão da certificação; e
II – de renovação da certificação protocolados fora do prazo legal ou com certificação anterior tornada sem efeito por qualquer motivo.
§ 8º No caso de não apresentação do Cebas, na forma prevista no § 6º, o órgão ou a entidade pagadora obriga-se a efetuar a retenção do IR e das contribuições sobre o valor total do documento fiscal ou fatura apresentada pela entidade no percentual de 9,45% (nove inteiros e quarenta e cinco centésimos por cento), mediante o código de arrecadação 6190 (demais serviços) do Anexo I desta Instrução Normativa. (…)
Pela análise dos trechos da IN 1234/2012 acima colacionados, verifica-se que a Receita Federal do Brasil condicionou o reconhecimento da imunidade tributária das entidades sem fins lucrativos previstas nos incisos III e IV do art. 4º – especialmente aquelas que atuam nas áreas da saúde, educação e assistência social – à apresentação, no momento da contratação com o poder público, do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS devidamente válido e vigente.
A ausência desse certificado, ainda que a entidade comprove o preenchimento dos requisitos constitucionais e legais para fruição da imunidade, impõe-lhe a automática retenção na fonte de tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS/Pasep e Cofins), em percentual fixo de 9,45%, incidente sobre o valor bruto da nota fiscal ou fatura. Tal exigência normativa levanta questionamentos quanto à sua conformidade com o princípio da legalidade tributária, com a hierarquia das normas e com o regime constitucional da imunidade conferida às entidades sem fins lucrativos.
III. ANÁLISE JURÍDICA
A Constituição Federal, através do art. 150, VI, c, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre “patrimônio, renda ou serviços das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei”. Tal norma trata de imunidade tributária – limitação constitucional ao poder de tributar – e não de mera isenção.
A distinção é fundamental na presente análise, pois, enquanto a isenção é concedida por lei infraconstitucional e pode ser limitada ou revogada pelo legislador, a imunidade tem status constitucional e só pode ser regulamentada, jamais restringida, por norma infralegal.
A Lei nº 9.532/1997, no art. 12 estabeleceu critérios objetivos para o gozo da imunidade prevista no art. 150, VI, c, da CF, pelas instituições de educação ou de assistência social. Determinou que se considera imune a instituição “que preste os serviços para os quais houver sido instituída e os coloque à disposição da população em geral, em caráter complementar às atividades do Estado, sem fins lucrativos” e estabeleceu a partir no parágrafo 2°§ do mesmo artigo os requisitos para gozo da imunidade:
a) não remunerar, por qualquer forma, seus dirigentes pelos serviços prestados, exceto no caso de associações, fundações ou organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos, cujos dirigentes poderão ser remunerados, desde que atuem efetivamente na gestão executiva e desde que cumpridos os requisitos previstos nos arts. 3o e 16 da Lei no 9.790, de 23 de março de 1999, respeitados como limites máximos os valores praticados pelo mercado na região correspondente à sua área de atuação, devendo seu valor ser fixado pelo órgão de deliberação superior da entidade, registrado em ata, com comunicação ao Ministério Público, no caso das fundações;
b) aplicar integralmente seus recursos na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais;
c) manter escrituração completa de suas receitas e despesas em livros revestidos das formalidades que assegurem a respectiva exatidão;
d) conservar em boa ordem, pelo prazo de cinco anos, contado da data da emissão, os documentos que comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas, bem assim a realização de quaisquer outros atos ou operações que venham a modificar sua situação patrimonial;
e) apresentar, anualmente, Declaração de Rendimentos, em conformidade com o disposto em ato da Secretaria da Receita Federal;
f) recolher os tributos retidos sobre os rendimentos por elas pagos ou creditados e a contribuição para a seguridade social relativa aos empregados, bem assim cumprir as obrigações acessórias daí decorrentes; (Vide ADIN Nº 1802)
g) assegurar a destinação de seu patrimônio a outra instituição que atenda às condições para gozo da imunidade, no caso de incorporação, fusão, cisão ou de encerramento de suas atividades, ou a órgão público;
h) outros requisitos, estabelecidos em lei específica, relacionados com o funcionamento das entidades a que se refere este artigo.
Já, através do seu artigo 15, determinou a seguinte isenção:
Art. 15. Consideram-se isentas as instituições de caráter filantrópico, recreativo, cultural e científico e as associações civis que prestem os serviços para os quais houverem sido instituídas e os coloquem à disposição do grupo de pessoas a que se destinam, sem fins lucrativos.
§ 1º A isenção a que se refere este artigo aplica-se, exclusivamente, em relação ao imposto de renda da pessoa jurídica e à contribuição social sobre o lucro líquido, observado o disposto no parágrafo subseqüente.
Além disso, através do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1802, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, a Suprema Corte apreciou o tema da delimitação dos âmbitos da matéria com reserva de lei complementar quanto à imunidade tributária constante no art. 150, VI, c da CF. Neste julgamento, se entendeu que bastaria lei ordinária para fixar normas sobre a constituição e funcionamento das entidades educacionais e de assistência social imunes conforme o art. 150, VI, c, da CF, carecendo de lei complementar o que diga respeito aos “lindes da imunidade”.
Nesse contexto, o art. 14 do Código Tributário Nacional é a lei complementar apta a determinar os “lindes da imunidade” e a Lei nº 9.532/1997, mais precisamente em seu art. 12 é a lei ordinária que estabelece critérios objetivos para o gozo da imunidade prevista no art. 150, VI, c, da CF. Entretanto, nenhuma das previsões legais exige a obrigatoriedade de apresentação do Certificado de Entidade Beneficente – CEBAS como condição para o exercício da imunidade.
Assim, ao condicionar o afastamento da retenção de tributos federais à apresentação do CEBAS por entidades que atuam nas áreas da saúde, educação e assistência social, a Instrução Normativa RFB nº 1.234/2012 incorre em vício de ilegalidade e inconstitucionalidade, ao extrapolar os limites da função meramente regulamentar da Administração Tributária.
Com efeito, a exigência do CEBAS como condição para reconhecimento da imunidade prevista no art. 150, VI, c, da Constituição da República afronta o princípio da legalidade tributária (art. 150, I, da CF), na medida em que cria obrigação tributária não prevista em lei complementar ou ordinária.
Cabe destacar que a Lei Complementar nº 187/2021, que rege a certificação das entidades beneficentes, disciplina exclusivamente a imunidade das contribuições sociais prevista no art. 195, § 7º, da Constituição, não alcançando nem regulando a imunidade prevista no art. 150, VI, c. Dessa forma, o CEBAS é pertinente e exigível apenas no âmbito da imunidade às contribuições à seguridade social, não podendo ser exigido como pré-condição para reconhecimento da imunidade de impostos federais.
IV. CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, conclui-se que a exigência de apresentação do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), como condição para afastar a retenção de tributos federais nos pagamentos efetuados por entes públicos às entidades sem fins lucrativos mencionadas nos incisos III e IV do art. 4º da Instrução Normativa RFB nº 1.234/2012, é ilegal e inconstitucional no que tange ao IRPJ, violando:
- o art. 150, VI, c, da Constituição Federal, que assegura imunidade a impostos de instituições de assistência social sem fins lucrativos que cumpram os requisitos legais;
- o princípio da legalidade tributária, ao criar condição não prevista em lei.
No que concerne à CSLL e à COFINS, é ilegal, visto a violação:
- ao art. 15 da Lei nº 9.532/1997, que disciplina a isenção (no caso de instituições filantrópicas e associativas) de forma objetiva, não vinculando o gozo do benefício tributário à apresentação do CEBAS;
- ao princípio da legalidade tributária, ao criar condição não prevista em lei.
Portanto, a exigência normativa contida nos §§ 6º e 8º do art. 6º da Instrução Normativa RFB nº 1.234/2012 configura indevida restrição ao exercício da imunidade e da isenção, uma vez que Cria condição não prevista em lei, usurpando competência do Poder Legislativo e Impõe ônus indevido às entidades sem fins lucrativos, mesmo quando estas comprovam objetivamente o cumprimento dos requisitos constitucionais e legais para fruição da imunidade e da isenção.
Entende-se cabível a exigência de apresentação do CEBAS apenas para fins de imunidade às contribuições sociais previstas no art. 195, § 7º, da Constituição, nos moldes disciplinados pela Lei Complementar nº 187/2021, não podendo tal exigência ser estendida às hipóteses de imunidade de impostos federais (IRPJ) ou de isenção da CSLL, tampouco ser imposta como pré-requisito para afastar a retenção da COFINS, quando ausente previsão legal expressa nesse sentido.